quinta-feira, 1 de janeiro de 2009


Quando o meu pai e os meus irmãos voltavam de suas escavações arqueológicas, traziam da zona de guerra a poeira da morte e da danação. Eu também tinha uma mãe, uma mãe como todas as pessoas, nem boa nem má, gente concebida debaixo de lençóis frígidos. Sim, nasci de um útero cravejado de miomas crescidos comigo e a placenta e os deslocamentos dos órgãos e a corda segura dos enforcados antes da Revelação - ligação entre umbigo e Máquina Geradora. Após outros cinco partos uma filha rachada ao meio. Única mulher que suava em noites de inverno porque às vezes as granadas explodiam bem perto da janela. Mesmo florzinha, caçula, pequena, mesmo tola, espancada que era, mesmo intuitiva, virgem queimada na fogueira, eu já triturava a pétala falsa de amor entre os dentes cuja gengiva sensível exibia ossos humanos, mecha de cabelo esvoaçando no alto da árvore na ponta do galho fino e era a mecha do cabelo da velhinha que sustentava os netos. Eu ficava à janela contemplando-lhe o esqueleto e o modo de agir como rato se esquivando dos dignos que moravam no bairro Rosa e que agora também enterrados debaixo dos pilares de mármore. Que não os protegeram das bombas. Ela também era arqueóloga. Catava verduras assassinadas, frutas fuziladas, restos de arroz. Em vão brigava com os pombos, bicos, bicadas, parem, suas bestas! E voltava à lixeira que nada mais era que: a rua. Antes da guerra, antes do estado natural do combate, a velha levava os pequenos para a creche pois a filha trabalhava na fábrica de sabão, que desapareceu como quando a bolha se rebentava contra o muro. Sobraram-lhe netos esquálidos que a chamavam de mãe-véia. Eu sentia nojo dela, nojo de sua submissão, nojo de sua sobrevivência indigna que jamais afrontava os coturnos dos militares e gritava pela ausência de quem pusera ( talvez sem pensar, talvez de propósito) no mundo minado, nojo por aceitar como fato a lacuna cancerosa em branco. Mas eu estava só na minha náusea.

Nas quintas-feiras, eles, os da minha casa, saíam com lanternas, pás e sacolas a fim de buscar na casa dos outros seus tesouros perdidos e isso nos sustentava até o próximo ataque quando nossos amigos mais chegados marcariam um dia na semana para nos saquear. E antes que partissem para os roubos, minha mãe punha na vitrola um tango, o cantor pedia para que o esperassem no céu, mas eu somente acreditava no soldado morto. No soldado de tez pálida, olhos fixos no vão entre a porta do céu e o tapete espesso do inferno, e ele estava ali, o soldado jovem, baleado em dez partes do corpo, o sangue seco, o tango na minha cabeça, espero no além mas antes toque com sua mão gelada minha coxa viva, carne tenra, polpuda espécie que ainda não foi abatida na cama, menino inimigo cuja corrente ao redor do pescoço exibia a inscrição que me cravou estaca no peito: ”para sempre amado, filho nosso.” E eu que não era amada, menina, eu que nada significava em terra de macho, criada, obsoleta, mobília gasta, eu que apenas virava os dias à espera de ser seqüestrada pelo inimigo, disco voador ou tio pedófilo, alguém pelo amor de Deus que me tirasse dessa terra que nunca nunca revelava o endereço das trincheiras, que jamais indicava seta, coágulos de sangue pelo caminho, estrada segura, radiografia do arco-íris. Abortada fui após nove meses de gestação. Se não me amavam por que me geraram, se Frankenstein eu era por que bom dia me diziam depois do chão varrido, lavado, encerado, lambido.

A culpada de todo o meu infortúnio era a cadela parideira da minha mãe que tanto amor eu nutria, que tanta paixão de rebentá-la ao meio, tanto desejo de que dependesse de mim ao invés de me explorar e amar aos outros, aos levantadores de tampa de privada, aos porcos ladrões de bens alheios, ao homem que ela chamava de pai e enfiava-lhe espada bruta no corpo como quem limpa uma arma de fogo. De onde eu estava, de qualquer lugar, qualquer marcação de cena, era possível vingar-me da vida admirando a beleza da mulher que me expulsou de si num ato de desatino chamado vulgarmente de parto. Bela, frágil, pura e vadia. Toda para mim. Venha, filha, vamos conversar; somente as mulheres, vocês, primitivos, caíam fora! Cheiro de mãe, pitanga, sol sobre a grama, cheiro de maquiagem, sandálias vermelhas, saias longas, enfeites no cabelo, rosa rubra artificial atrás da orelha. Um planeta fora do meu alcance, a mãe que me punha um medo de ranger ossos. E em tempos de guerra o medo era nosso aliado, ainda mais numa casa de famintos, num lar cristão onde até mesmo os heróis seriam devorados.

Algumas vezes sentava-me sobre uma pedra e fingia que era época de paz e esquecia-me por completo do quitandeiro que velava a esposa na cama e esquecia também as perfurações dos projéteis na quitanda, no estouro incrível dos tomates como cérebros golpeados para fora do crânio e o rasgo extenso no toldo azul – cópia barata do céu de outrora – aberto por um bisturi na mão nervosa de um cirurgião abandonado pela amante mais puta, mais amada, mais serviçal mas que um dia acorda e se enforca com o próprio sutiã para castigá-lo, castigar o manipulador de seus sentimentos. E esse cirurgião maluco poderia muito bem ser o senhor da guerra que matou quase todos da minha cidade, a mais feia do mundo. Em nome da divindade fosse do petróleo fosse do espírito me separava cada passo mais, cada afago menos, cada gemido trancado na garganta, sufocado entre as artérias, seringa com ar, me separava dela, (quem era eu senão um pedaço do seu ente?), farelo de seu sorriso, solidez de sua lágrima, inoportuno acontecimento, o descuido, o acidente, a menopausa tardia, mero engano. E pelas ruas, com meus andrajos de guria rejeitada, alugava meu tempo para os passarinhos mutilados de asa, as formigas assombradas pelo peso corcunda, a companhia dos mortos jogados nas valas. Até que na hora fria da solidão, quando os batimentos cardíacos pairavam na estupidez do declínio, roubava um tomate e o mordia como quem morde a vida até o talo, os dentes rasgavam a pele e me rasgavam por dentro, choro vermelho nos cantos das pálpebras sujava meu rosto de terra vencida. O filete manchava-me a blusa. Eu incorporava uma artista de cabaré francês, asinhas se agitavam nas solas dos meus pés e eu dançava por entre tanques e a vastidão do vazio fundido num dia de agosto. A guria que comia o mundo e era levada pelas borboletas surgidas das minhas veias, borboletas maculadas de sangue, borboletas loucas, apaixonadas pela brevidade do existir e a agudez da fuga. No horizonte a partida chamava-me, inevitável. Bastava uma trouxa de roupa, pular a janela e ganhar a liberdade. Na próxima semana minha família também estaria debaixo da terra. Então era preciso esmagar o poder do fruto, correr para casa, acertar minha mãe na cabeça e levá-la comigo para a Salvação. Sem mim, ela jamais resistiria ao ataque das tropas e mordaças e unhas de aço, jogar-lhe-iam na cama enquanto os outros fuzilados seriam, a ordem das coisas, a rotina das batalhas, mas não, não com ela, não com aquela que fechara as pernas para que eu não deslizasse livremente pelo canal de sua vagina. Se não fosse a bofetada do médico em sua cara, eu. Morta agora e sempre estaria.

A calma era um trunfo dos bons. Uma vez por semana havia o treinamento de sobrevivência. Que pouco adiantava. Corríamos para o porão – todos os habitantes possuíam o seu porão ou se escondiam no do vizinho – com mantimentos e água. Aguardávamos por duas horas. Escafeder-me durante o ressoar da sirene com Ela pela mão. Nada de roupas ou dinheiro. Sem perda de tempo. Apenas a vontade. Ganharíamos quilômetros até a fronteira, pegaríamos carona, arranjaríamos empregos, novas identidades, viveríamos em habitações decentes com jardins floridos e cães e gatos. À tardinha sentaríamos em cadeiras nas calçadas e a conversa sobre o dia e o futuro jamais escorregaria para o lado errado, para o avesso do presente, para a etiqueta de dentro da camisa-de-força do passado. Porque teríamos flores de verdade entre as mechas de nossos cabelos.

Quando o alarme gritou indefeso e deprimente, os homens da minha casa correram para o esconderijo e ela foi empurrada para um canto da cozinha. Olhei para minha mãe, olhei para a porta aberta, as pessoas na rua corriam desarvoradas, batiam-se umas contra as outras. Avancei menos de quatro passos: Não saia daí, mandou. Ordem materna. Como sempre cumprida.

Desceu com a família para o porão e trancaram a porta. Esperei o tempo necessário. No meio da cozinha admirando o alumínio brilhante do fogão e a quantidade idiota de gotas pingarem da torneira, duas, três, vinte e nove, cinqüenta...

O ataque era falso. O treinamento ainda mais. Aos poucos, as criaturas presas voltavam para suas rotinas, jantar, varrer, contar os moribundos, procurar pelos desaparecidos, acender velas.

Bem, a verdade era que os da minha casa nunca mais voltaram. Nem ela. E eu fiquei por aqui, esperando, sentada nessa cadeira, às vezes deitada na cama, outras catando tomates podres pela rua, quase sempre me vendendo por bebida e na maior parte do tempo esquecendo aos poucos que amei a mulher que me pariu gente pra esperar, gente do sexo errado, mas, por favor!, se você passar pela minha cidade, saberá qual é, a em ruínas, pare em frente ao meu lar doce lar e leia o bilhete que deixei do outro lado da vida, estarei pronta para fugir.